domingo, fevereiro 15, 2004

A carta

Já fui várias vezes abrir a caixa de correio mas a tua carta não chega. Eu sei que o carteiro passa a horas fixas e se há cinco minutos a carta lá não estava, não irá estar agora. Mas existe sempre a hipótese de que o carteiro a tenha colocado na caixa de um vizinho, e este, ao chegar a casa e ao dar pelo engano, a tenha vindo colocar no sítio onde a espero.

Mas e se o vizinho está de férias, e a minha/tua carta fica lá perdida semanas a fio?
E se ele abre a carta apesar de não lhe ser dirigida?
E se ele a deita ao lixo, mesmo sem a olhar?

Não consigo deixar de pensar na carta que aguardo, já sei de cor as palavras que espero ver lá escritas, já ensaiei mil vezes a resposta.
Mas depois a dúvida instala-se. E se tu não sentes necessidade de me dizer o que eu espero ouvir, se vais adiando, por um dia, e depois por outro, até que deixas de te lembrar do que querias dizer, até que deixas de te lembrar de mim.

Ou se as palavras que eu imagino não são as que tu sentes. Ou se tu simplesmente não sentes, não tens consciência do que me fizeste, pelo que me fizeste passar neste últimos dias. Não tens nenhuma palavra de desculpa para mim. Se pelo contrário, o que tens são recriminações, pela inocência que agora sei patética, pela confiança, que agora sei deslocada, pela amizade, que não surtiu qualquer eco desse lado. Pela dor que unicamente te merece um sorriso irónico.

Continuo esperando a carta. A ansiedade diminui a cada dia que passa. Instala-se o cansaço, a rotina, um entorpecimento da memória, um anestesiar da dor. A ferida já começa a ganhar uma pele suave e rosada.



Tocaram à campainha, ponho-me em bicos de pés e espreito, é o carteiro. Traz uma carta registada, é necessário assinar.

Reconheço a tua caligrafia no endereço do envelope. Fico paralisada, sem saber o que fazer. O que eu tanto desejei está finalmente ali, só é preciso um gesto, só preciso de um gesto, um gesto. E não sou capaz de o esboçar.

“ É para assinar aqui e ali” – aponta o carteiro.

“ A senhora não está, e eu não tenho ordens para assinar nada!” - respondo eu, tentando parecer a empregada. Se ele acreditou ou não, não é importante, já deve estar habituado a todo o tipo de teatros.

“ Então, deixo aqui o aviso, e a senhora deverá levantar a carta na estação dos correios a partir de amanhã e num prazo de 6 dias”

Vi a carta encontrar o caminho de volta dentro da sacola do carteiro.

Telefonei para o escritório e avisei que tinha uma urgência pessoal, e tinha de me ausentar durante uma semana, talvez um pouco mais. Olhei as malas feitas, pousadas há vários dias na entrada. A decisão já estava tomada, o momento chegara agora!

Respirei fundo, peguei no mapa de Espanha, os óculos escuros, o chapéu e fechei a porta atrás de mim. Deixei-te do outro lado dessa porta, esperando não te encontrar quando regressasse… se regressasse.

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