terça-feira, fevereiro 17, 2004

A carta II

Segui estrada fora respeitando amplamente os limites de velocidade, não por consciência, mas simplesmente porque não tinha destino, não tinha pressa de chegar a nenhum local, unicamente desejo que o tempo passasse. Continuava pensando em tudo o que havia vivido nos últimos meses esperando que o vento que passava pela janela aberta conseguisse retirar o amargo, a dor, a desilusão, deixando unicamente as boas recordações, que as havia, que a minha razão sabia, mas que o meu coração se negava a aceitar.

O dia estava quente, a hora do meio-dia não fora uma boa escolha para partir, não me devia ter deixado levar assim pelo ímpeto do momento, devia ter esperado, dormido mais um dia na cama que na minha imaginação ainda tem o teu cheiro, o teu não, o cheiro dele, que não mais vou escrever para ti, perdão, para ele.

Velhos hábitos são difíceis de abandonar. Tantas vezes lhe tinha escrito longas cartas nas noites em que o sono se atrasava e ficava perdido num qualquer recanto até que a madrugava despontava, e então aparecia, forte e conciliador. Tantas cartas escritas, umas a tinta ténue sobre papel, outras escritas a sonhos sobre a vida, tantas palavras, tantas interrogações e contudo quantas certezas.

A vontade de sentir a aragem no rosto, o ruído ritmado do vento na janela aberta que me servia de fundo aos pensamentos, era contrariada pelo desejo da frescura do ar condicionado. Acabei a fechar a janela, ligar o ar condicionado e o rádio. Ainda ouvi a Sheryl Crow cantar.


“… first cut is the deepest
Baby I know the first cut is the deepest
But when it comes to being lucky he's cursed
When it comes to loving me he's worst


I still want you by my side
Just to help me dry the tears that I've cried
And I'm sure going to give you a try …”



Porque é que o acaso se delicia a brincar com as palavras das músicas e a retirar-me toda a determinação? O primeiro golpe é efectivamente o mais profundo, aquele que deixará a cicatriz mais visível e por mais tempo. Mas os golpes seguintes não serão, por isso, mais fáceis de suportar. Os golpes seguintes vão minando a confiança, vão embotando os sentidos, destruindo os sentimentos.

Sei-o, já passei por isso com outros, não gostaria de também o passar contigo. Julguei que nunca o passaria contigo, achava-te especial, achava que o que tínhamos era especial.

Não consigo afastar-me deste hábito de contigo falar, já viste? A música tem razão, continuo a querer-te a meu lado, continuo a querer-te do outro lado das minhas palavras, do outro lado dos meus pensamentos. Continuo a querer-te para completares os puzzles da minha vida.

Continuo à espera que naquela carta que eu me recusei a receber esteja uma explicação tão bem imaginada que eu só possa acreditar nela, sentir-me até culpada por tudo o que imaginei.

Continuei a conduzir, as lágrimas secas retesavam-me a pele do rosto, sentia o nariz entupido, os olhos vermelhos, mas estranhamente, sentia-me muito mais calma. As lágrimas sempre tiveram esse efeito em mim, muito melhor que o cháde cidreira, ou seria de camomila, que a minha mãe me costumava fazer. No primeiro cruzamento que encontrei, virei para uma estrada secundária e entranhei-me terra a dentro, Portugal rural a dentro.

Espanha pode esperar, Espanha pode sempre esperar!

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